O Eufrates é um sonho, um rio, um mito, um espaço que não existe, o Jardim do Éden, o Ararat, a arca (perdida), a Mesopotâmia, a Babilónia, a origem oriental do mundo ocidental.
Com 2700 km de extensão, o Eufrates resulta da confluência de dois cursos de água principais. Um, o Kara Su, nasce na Arménia turca, a cerca de 100 km da extremidade sudoeste do Mar Negro. O outro, o Murat Su, nasce sensivelmente a meio caminho entre o lago Vã e o Monte Ararat. Após percorrer 1000 km em território turco, entra na Síria e, por fim, penetra em território iraquiano, percorrendo mais 1000 km. Perto de Bassorá, conflui com o Tigre, formando o Shatt al-Arab, num vasto delta que desagua no Golfo Pérsico.
O Eufrates atravessa fronteiras políticas e sentimentais da Arménia, Turquia, Curdistão, Síria e Iraque, mas também foi fronteira – a fronteira setentrional da região formada pela Palestina e pela Síria, compreendida entre o Egipto e a Babilónia. Durante a época do império persa, separava oriente e ocidente, como indica a expressão “além-rio”, para de seguida assinalar também a fronteira oriental do império romano.
Como contar a história do Eufrates? Como fazê-lo através do cinema? Talvez deixando-se levar pela corrente serena do rio, como as maçãs vermelhas de Nahapet, de Henrik Malyan – a primeira leitura cinematográfica épica da tragédia arménia, que adapta o romance de Hrachya Kochar sobre um sobrevivente do genocídio, produzida pela Arménia soviética –, ou pelo barco de Zaman, l’homme des roseaux, que deixa o seu paraíso para tratar a mulher doente enquanto em fundo os ecos da guerra atravessam esta produção quase clandestina, contrária ao regime de Saddam Hussein prestes a colapsar.
O nosso Eufrates começa na Arménia e com o primeiro filme arménio, Namus, realizado por Hamo Beknazaryan, em Junho de 1926. Trata-se de um filme mudo que narra a vida quotidiana de uma pequena cidade de província no final do século XIX. O século XX tem início na Arménia com o genocídio do seu povo, legado de um império otomano que se está a desfazer sob as investidas das potências coloniais europeias, que traçam outras fronteiras, provocando outros conflitos e feridas que marcam toda a Era dos Extremos e que ainda hoje sangram.
E o Eufrates recolhe as maçãs vermelhas como o sangue.
E o cinema conta, testemunha e documenta, mas, procurando viajar pelas águas do rio e seguir o tempo e o espaço, fala também dos fantasmas, dos foras-de-campo, do antes e do depois, quase a tentar fazer coexistir a realidade e o mito da realidade, que se transforma em arma da verdade e da sobrevivência, como nos dá conta Éclats d’Armenie, quatro curtas-metragens de Jacques Kébadian.
Porque o Eufrates é também o símbolo da diáspora, do exílio: os hebreus iraquianos de Baghdad Twist, de Joe Balass, forçados a deixar o Iraque de Saddam Hussein no final dos anos 1960; mas também os habitantes do Shatt al-Arab, enviados para a fronteira com o Irão por razões de guerra e depois expulsos pela poluição do rio (Al-Ahwar e Sawt, de Kassem Hawal); e mesmo os “filmes exilados”, rodados em cativeiro e montados clandestinamente no exílio, como a Palma de Ouro Yol, acusado de dar a ver um outro território “imaginado”, o Curdistão.
O Eufrates é também um sonho desvanecido.
O sonho do pan-arabismo, da revolução socialista encarnada pelo partido Baath na Síria e no Iraque; o sonho de um cinema de investigação, popular e político, como o cinema de Omar Amiralay, Oussama Mohammad e Mohammad Malas. Um cinema crítico e importante que soube sobreviver à guerra que ainda assola a Síria através de uma geração de realizadores e realizadoras (exilados, novamente uma diáspora longe do rio) capazes de questionar a linguagem e a consciência do cinema europeu e ocidental, como o demonstrará a performance Ghouta Expanded 2.0, encenada por Donatella Della Ratta, Ammar al-Beik e Aghyad Abou Koura.
— Davide Oberto