DE TODOS OS QUE NÃO EXISTEM
A maior parte das vezes, Želimir Žilnik conta histórias de pessoas no limite da não existência: a Jugoslávia comunista não reconhecia oficialmente que os seus cidadãos podiam não ter trabalho (Nezaposleni Ljudi [The Unemployed]), ser negligenciados pelos pais (Pioniri Maleni mi smo Vojska Prava, svakog Dana ničemo ko Zelena Trava [Little Pioneers]), ou estar desalojados (Crini Film [Black Film]). O inatacável bastião da Europa e um passaporte do espaço Schengen como quimera de toda a gente constituem os temas das trilogias Kenedi e Immigrant (a última consistindo em Tvrđava Evropa [Fortress Europe], Evropa preko Plota [Europe Next Door], e Destinacija_Serbistan [Logbook_Serbistan]). Talvez tenha sido no irrequieto cigano Kenedi, que sente que não pertence a lado nenhum, que Žilnik encontrou o seu herói arquetípico, disposto a defender as pessoas que ele tem apoiado há décadas. O crítico de cinema Jurij Meden chega mesmo a dizer que Kenedi é o alter ego do realizador, louvando este ciclo em particular como o trabalho mais pessoal de Žilnik.
Na obra-prima crucial do seu período mais recente, Stara Škola Kapitalizma [The Old School of Capitalism] (2009), o cineasta orquestra várias cenas complexas, povoadas por uma série de personagens embrenhadas em discussões acesas. Dirigindo a discussão política que improvisam, Žilnik filma-as com três câmaras em simultâneo, o que comprova o seu método democrático. Alimentados pela dúvida, os seus filmes permitem aos antagonistas discutir o assunto ou mesmo lutar por causa dele e abstêm-se de postular Verdades com V grande ou de propor soluções prontas a utilizar. Em Stara Škola, comunistas idosos partilham a mágoa de se ter desperdiçado o legado de Tito. Pirika na Filmu [Pirika on Film] (2013) termina com uma conversa com antigos cidadãos jugoslavos e soviéticos, que procuram explicar como é que encontraram um lugar para si num mundo que mudou.
Pirika na Filmu prova, de forma muito categórica, a quantidade de cuidado e tacto com que Žilnik trata as suas personagens. Não é coincidência ele regressar, frequentemente, às vidas precárias de pessoas apenas tangencialmente envolvidas nas suas produções anteriores. Por exemplo, o realizador conhecera pela primeira vez a menina de rua Pirika Capko, quando estava a rodar Pioniri (1968). Depois, incluiu-a no elenco de Rani Radovi [Early Works] (1969), como irmã da personagem principal, Yugoslava. Quarenta e cinco anos mais tarde, cruzou-se com ela na rua e fez um filme inteiro sobre ela. Destino semelhante aguardava Vjeran Miladinović, que interpretou o incomparável Merlin, em Marble Ass (1995), após ter tido um pequeno papel em Lijepe Žene prolaze kroz Grad [Pretty Women walking through the City] (1986).
Para Žilnik, o cinema é um meio genuinamente democrático, conferindo um significado sem precedentes àqueles cuja própria existência é colocada em questão por qualquer estrutura de poder. Esta dotação é um resultado directo de encontrar consolo em imagens gravadas. Num auditório apinhado do cinema Arsenal, em Berlim, Pirika vê-se enquanto criança. Kenedi acarinha a cassete de vídeo da reunião da sua família e pede a Žilnik para enviar uma cópia de Kenedi se vraća Kući [Kenedi goes back Home] (2003) aos seus familiares. Há uma raça rara de cineastas que, ano após ano, filme após filme, continuam a construir uma narrativa histórica, enquanto criam, fabricam ou inventam abertamente um país cinematográfico próprio. Peter von Bagh fê-lo pela Finlândia, Lav Diaz pelas Filipinas. Žilnik foi o primeiro a fazer a crónica da desintegração da Jugoslávia, quando filmou um retrato único do seu país. Bolest i Ozdravljenje Bude Brakusa [Illness and Recovery of Buda Brakus], Prvo Tromesečje Pavla Hromiša [The First Trimester of Pavle Hromiš], Komedija i Tragedija Bore Joksimovića [The Comedy and Tragedy of Bora Joksimović]: deu o nome dos protagonistas a vários dos seus filmes, como se compilasse o seu próprio panteão, um santuário de pessoas que interessam realmente. Apesar de a Jugoslávia ter desaparecido do mapa do mundo, persistirá, uma vez que, junto destes homens invisíveis, que absorveram a sua história nas suas biografias e que se sentem perdidos sempre que têm de encarar o sistema, há sempre um homem com uma câmara. Želimir Žilnik, 72 anos, advogado, ainda a fazer filmes.
Boris Nelepo
(curador e colaborador na programação da retrospectiva Želimir Žilnik)