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Retrospectiva Johan Van Der Keuken

Este ano, o Doclisboa, em parceria com a Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, dedica a sua Retrospectiva ao cineasta e fotógrafo holandês Johan van der Keuken, prematuramente desaparecido em 2001. Autor de uma obra cinematográfica intensa, que estende por quatro décadas, Van der Keuken trabalhou no cruzamento da narratividade com o real, explorando as possibilidades do cinema como arte da percepção. Em Outubro, vamos poder descobrir a obra de alguém que recusou toda a sua vida a etiqueta de “documentarista” que lhe foi sendo repetidamente colada, afirmando em última análise que todo o cinema é ficção, embora considerasse a dicotomia inoperante.
No início dos anos 1950, começa a sua relação com a imagem pela fotografia. Publica com 17 anos o seu primeiro livro, Wij zijn 17 [We are 17], e de seguida Achter Glas [Behind Glas]. Alguns anos mais tarde, pouco interessado pelo curso de cinema no IDHEC, inicia experiências à margem da escola. Realizará o primeiro filme, Paris à l’Aube (1960), com uma Bolex de corda, a sua primeira câmara. A descoberta da filmagem com a câmara à mão é o momento em que o cinema se constitui plenamente como expressão. A fisicalidade do gesto de filmar – o arrancar da câmara do tripé, a sensação do peso da máquina, a filmagem à altura do olhar – torna-se essencial ao seu cinema, que, não por acaso, muitas vezes se detém na observação dos corpos em movimento.
O seu cinema desenvolve-se na relação dinâmica entre o movimento e a montagem e, por isso, não é surpreendente a referência que faz ao documentário de vanguarda dos anos 1920-30, ressalvando a introdução da palavra e a deriva para aquilo que qualifica de “picturalismo comentado”. Como realizador holandês, além da referência recorrente que faz a Herman van der Horst, não podemos deixar de pensar em Joris Ivens ou Bert Haanstra, quer pela construção musical da montagem, quer pelo exercício exaustivo do olhar.
É na relação realidade/percepção que o autor trabalha, insistindo que é a construção temporal que distingue o filme dos acontecimentos passados à frente da câmara. Artista atento e comprometido com o seu tempo, Van der Keuken dialoga com os criadores das mais diversas áreas – temos de referir aqui Big Ben: Ben Webster in Europe, um filme sincopado em torno da obra, do homem e do corpo do grande saxofonista, sendo a relação com o jazz em todas as suas vertentes, política e social, mas também rítmica e de improvisação, estruturante no cinema de Van der Keuken, particularmente sensível na montagem. O jazz será ainda o mote para Maarten en de Contrabas [Maarten and the Double Bass], 1977, além da colaboração com o músico e compositor Willem Breuker, de 1966 (Een Film voor Lucebert) [A Film for Lucebert] a 1994 (On Animal Locomotion), por mais de uma dezena de filmes.
Da música, e porventura das demais vanguardas artísticas do seu século, Van der Keuken adopta processos experimentais – o que não o aproxima, antes pelo contrário, do chamado “cinema experimental”, que considera “gratuito” – e pensamos aqui em particular na improvisação: “Sou um cineasta que improvisa. Improvisar também existe para as imagens. Para mim, improvisar e não improvisar constitui uma oposição muito mais importante do que, por exemplo, entre documentário e ficção. Para mim essa segunda ordem de oposição não funciona. Mas improvisar, isso é uma categoria real.”
Outro exemplo é o da relação continuada com o poeta e pintor Lucebert, do movimento vanguardista COBRA, que se traduz no tríptico Lucebert, Tijd en Afscheid [Lucebert, Time and Goodbye], iniciado pelo jovem realizador em 1962 e terminado, após a morte de Lucebert, pelo cineasta já maduro em 1994. A apresentação conjunta das três curtas-metragens é, assim, tanto um retrato em movimento do artista, como uma viagem pelo cinema de Van der Keuken, na sua radicalidade estética e na sua profunda humanidade.
Nos filmes dos seus contemporâneos, Van der Keuken procura novos possíveis formais, novas narratividades: o jump cut e a ruptura do contínuo em À bout de souffle [O Acossado], de Godard, a inovação narrativa de Resnais em Hiroshima mon Amour [Hiroshima, meu Amor], entre outros, a chegada do som síncrono nas filmagens de exterior com Les Maîtres Fous [The Mad Masters] e Moi, un Noir [Eu, um Negro], de Jean Rouch.
“Temos de pensar que até à chegada do cinema vérité, o cinema documental era uma imagem com uma música, uma bruitage, ou um comentário, não síncrono.” [Mes Caméras, in Aventures d’un Regard, Cahiers du Cinéma, 1998]
O trabalho do som dos filmes adquire para Van der Keuken uma importância fulcral, sendo ele que atribui a tridimensionalidade à imagem. Por um lado, a complexa montagem sonora em camadas, por outro, o trabalho de composição no tempo, ligando a montagem à composição musical, são marcas distintivas da sua obra.
Discutindo as propostas formais e éticas do cinéma vérité de Rouch, em particular o contínuo temporal ininterrupto, a “pureza” dos planos-sequência, Van der Keuken defende a montagem como construção realista da percepção. Na sua procura de uma ética da montagem – e não de uma moral, Van der Keuken denuncia o puritanismo em volta do documentário, inexistente na ficção – De Tijd Geest [The Spirit of Time], de 1968, anula radicalmente as relações hierárquicas de conteúdo: presente/passado/futuro, real/ irreal, aqui/lá. “Para poder descrever as percepções, é preciso destruir as emoções hierarquizadas. (…) Isso exige um pensamento no Tempo.” [in Vrij Nederland, dez. 1968]
“Apercebi-me de que a minha maneira de pensar é bastante binária: «e/e» mais que «ou/ou»: o interior e o exterior, os seres e as coisas, o norte e o sul… Um carácter binário que instiga a montagem.” [Photographe et Cinéaste, 1984]
A ruptura utópica das relações hierárquicas no material fílmico é indissociável da constante atenção estética ao mundo e do olhar político sobre todas as coisas, privilegiando o próximo, o pequeno, o pobre, as crianças, os danados. Aqui também a percepção está no centro do gesto do cineasta, que interroga as próprias fronteiras do seu corpo nos filmes sobre a cegueira – Blind Kind [Blind Child], mais centrado na fisicalidade e no movimento de libertação das crianças cegas, e Herman Slobbe/Blind Kind II [Herman Slobbe/Blind Child II] assumidamente político, denunciando a segregação social – ou sobre a surdez: as operárias holandesas em De Nieuwe Ijstijd [The New Ice Age] (1974) em contraponto e paralelo com os pobres de Lima, Perú, na hora da mudança política, neste que é o último capítulo do seu tríptico Noord-Zuid [Norte-Sul]. O dualismo resulta assim, não numa simplificação conceptual, antes numa desmultiplicação das dualidades, expressa na montagem caleidoscópica, reflexo da intensa complexidade do mundo.
Essa complexidade e os seus desdobramentos temporais levam Van der Keuken a trabalhar na duração, não a dos planos e dos contínuos internos, antes a da vida, nos filmes que se desdobram – como Lucebert… ou o tríptico Noord-Zuid, já mencionados – e se desenvolvem ao longo do tempo, ou ainda no sinfónico, après la lettre, Amsterdam Global Village (1996).
A vida, os corpos, os gestos íntimos surgem a cada instante nos filmes, objecto de estudo em On Animal Locomotion ou insinuando-se, quebrando todas as lógicas discursivas, em Amsterdam Global Village – um casal dá banho ao bebé, uma cena de relação sexual… Van der Keuken está presente nos gestos, nos movimentos, nos zooms e, apesar de não ser aquilo a que se pode chamar um cineasta da primeira pessoa, ao longo dos mais de cinquenta filmes que realiza, assume em alguns momentos o corpo-voz motor, como em Vakantie van de Filmer [Filmmaker’s Holiday], filme onde explicita magistralmente o seu processo de trabalho, as relações que tece entre o íntimo e o público, entre os acontecimentos históricos e a vida quotidiana. No seu último filme, De Grote Vakantie [The Long Holiday] (2000), Van der Keuken, já consciente da sua morte próxima de cancro incurável, cruza imagens de uma derradeira volta ao mundo com as dos seus tratamentos, procurando na luta pela sobrevivência dos seus irmãos humanos a resposta à sua própria mortalidade. “Je est un Autre” [Eu é um Outro]. A afirmação de Rimbaud poderia ser mote para a obra deste cineasta que olha apaixonadamente o outro e se oferece corpo-voz e pensamento, filme após filme, embora porventura no seu caso se pudesse desmultiplicar em “Eu é todos os outros”, vivos e inertes. As viagens de Van der Keuken à Palestina, ao Biafra, à Líbia, à América do Sul, entre outros, são outros tantos movimentos em direcção ao Terceiro Mundo, o dos pobres entre os pobres; no entanto, é antes de mais um cineasta virado para o próximo, o vizinho, mesmo que vindo de longe – como Ben Webster em digressão pela Europa, ou um grupo de teatro vietnamita em cena em Amesterdão (Vietnam Opera, 1973). Jean-Paul Fargier exprime essa ideia nestes termos: “Johan van der Keuken é um cineasta da vizinhança. Ou, mais simplesmente, um cineasta que olha à sua volta.” [Sans Images Préconçues, in Cahiers du Cinéma nº 289, 1978]. De Vier Muren [Four Walls] (1965), centrado na crise da habitação em Amesterdão, a To Sang Fotostudio (1997), retrato de uma pequena loja de fotografia local, a cidade do cineasta está omnipresente, não esquecendo obviamente o incontornável Amsterdam Global Village.
De Amesterdão e das suas gentes fala-nos também Beppie (1965), retrato de uma menina de 10 anos, ou melhor dizendo, retrato do mundo tal como o vê a criança que dá nome ao filme. Um dos filmes de Van der Keuken mais populares nos Países-Baixos, é também aquele onde o cineasta mais claramente enuncia uma certa identificação com as crianças, pessoas pequenas porventura mais livres do que os seus congéneres adultos. Van der Keuken filma crianças toda a sua vida, mesmo na hora da despedida inevitavelmente fúnebre do amigo Lucebert, e é sem dúvida também no seu olhar, na sua maneira de ver o mundo que encontra a fraternidade e a liberdade que procura incansavelmente.

Tiago Afonso